Antes de passar ao próximo passo, gostaria de fazer duas considerações a respeito do que foi tratado no post anterior. Em primeiro lugar, quero observar que a simplicidade dos requerimentos propostos reflete a simplicidade do projeto. Se estivéssemos diante de um requerimento real para um projeto mais complexo, deveríamos esperar algumas centenas de páginas descrevendo em minuciosos detalhes cada aspecto da aeronave. Por exemplo, detalhes sobre pressurização de cabine, manobrabilidade, controlabilidade e estabilidade, tempo de deflexão dos flaps e etc. que nem sequer mencionamos.
Para um pequeno experimental de uso privado, esses detalhes podem ser sintetizados dentro de um parâmetro do tipo “o melhor possível”, ao invés de valores numéricos máximos e mínimos precisos. Mas isso é apenas um fato circunstancial. Não é proibido estabelecer, por exemplo, parâmetros de “damping” (amortecimento) para a estabilidade lateral (yawing), só não nos parece muito necessário fazê-lo de antemão, podemos fazê-lo à medida que o projeto evolui.
Em segundo lugar, mencionamos a importância do fator segurança. Quanto a isso, um parâmetro importante para tal é o fator de carga, que não elencamos em nossos requerimentos. O fator de carga, normalmente indicado como um múltiplo de g (g é o valor da aceleração gravitacional), nos diz basicamente quantas vezes o seu peso normal (quando g = 1) a estrutura da aeronave é capaz de suportar. Aeronaves acrobáticas tem fator de carga normalmente superior a 6, caças tem tal valor tipicamente superior a 9, e aeronaves comerciais de transporte de passageiros tem fatores de carga em torno de 3.
O fator de carga, por um lado, coloca um limite aos tipos de manobra que podem ser feitas com a aeronave (compare-se os valores típicos de um caça com uma aeronave comercial), mas por outro lado, reflete também a “robustez” da estrutura. Condições de turbulência, por exemplo, tendem a “acelerar” a aeronave, exigindo de suas estruturas. A severidade de tal exigência é inversamente proporcional ao peso da própria aeronave. Em outras palavras: uma aeronave leve é muito mais sensível às solicitações de turbulências (ou rajadas) do que uma aeronave pesada – o que deriva simplesmente da segunda lei de Newton: F=ma, sendo F a força, m a massa e a a aceleração, ou seja, para uma mesma força, uma maior massa implica em uma menor aceleração. Por isso uma aeronave comercial pode ter um fator de carga de apenas 3g, por exemplo.
Pois bem, estabeleçamos que nosso experimental deve ter um fator de carga positivo de 6g, e negativo de 3g. Segundo a normativa em vigor (Parte 23), isso exigiria que nossa aeronave suportasse um fator de carga de 9g (margem de segurança de 50%). Trata-se de uma robustez considerável, visto que não se trata de uma aeronave acrobática e a maioria dos pilotos comuns já se sentiriam bastante desconfortáveis com uma aceleração de 2 ou 3g. No entanto, já que esperamos que nossa aeronave seja leve, convém termos um fator de carga alto. O preço disso é um pouco mais de peso estrutural. Voltaremos a isso ao abordarmos o envelope de voo.
Passemos então ao que devemos considerar hoje. Abaixo ilustro algumas “arquiteturas” possíveis, e em seguida faremos algumas considerações sobre elas.

Quatro "layouts" gerais: acima, à esquerda, o clássico Cessna 172. À direita, o Cirrus SR22. Abaixo, à esquerda, o Velocicty e por fim, o Northrop N9M.
Existem muitas maneiras de se caracterizar o layout ou a arquitetura geral de uma aeronave. Podemos fazê-lo em relação ao posicionamento da asa (alta, no caso do Cessna 172, baixa no caso do Cirrus SR22, média no caso do Velocity ou ainda o caso da “flying wing”, do Northrop N9M, em que a aeronave é a asa). Podemos também fazê-lo em relação ao tipo e posicionamento dos propulsores (trator, nos dois casos acima, “pusher”, no caso das duas aeronaves abaixo). Pode-se ainda considerar a configuração da cauda (convencionais nos dois exemplos acima, “canard” com estabilizadores verticais combinados com winglets no caso do Velocity, ou simplesmente ausente no caso das Flying Wings). Além disso, podemos considerar os tipos de trem de pouso. Enfim, existem muitas considerações possíveis, inclusive muitas que não são contempladas nas figuras acima. Chegaremos aos detalhes disso.
Por hora, cabe dizer que cada uma dessas configurações apresenta vantagens e desvantagens. As duas primeiras configurações são aquelas mais tradicionais. A principal vantagem delas é que, por serem as mais tradicionais, são também as mais conhecidas e as mais simples de se estabilizar. A configuração “canard” do Velocity se tornou muito popular a partir dos designs de Burt Rutan, e oferece uma significativa redução no arrasto por compensação, já que o “canard”, além da função de controle de picagem e cabragem, contribui para a sustentação. Além disso, com o propulsor na configuração “pusher”, o fluxo aerodinâmico pela aeronave é “limpo”, não sofrendo a perturbação da hélice que ocorre nos outros layouts. No entanto, a asa principal tende a trabalhar menos do que poderia, e o fluxo aerodinâmico chega turbulento na hélice. O primeiro fator leva a um aumento do arrasto (pois a aeronave deve levar mais “asa” do que precisa), e o segundo a uma diminuição do empuxo. Além disso, os estabilizadores verticais tem que ser maiores que o normal, visto o pequeno “braço” em relação ao centro de gravidade (que por sua vez tem seu posicionamento um pouco mais complicado). Já a “Flying Wing” é a melhor opção em termos aerodinâmicos e estruturais. No entanto, é a mais difícil de estabilizar, pelo menos em seu estado “puro”.
Mais à frente voltaremos a essas considerações e as trataremos em maiores detalhes. Era necessário apresentá-las, no entanto, pois a partir do próximo post começaremos a fazer o dimensionamento da nossa aeronave, e para tal nos será importante um parâmetro conhecido como Wetted Aspect Ratio, ou Aspect Ratio Molhado, ou ainda, traduzindo tudo: Razão de Aspecto Molhado. Ou então, como tendo a chamar: Alongamento Alar Molhado. Em termos matemáticos é mais simples: trata-se do quadrado da envergadura dividido pela área de superfície total (b2/Swet) que, como se verá, é de suma importância para uma estima inicial da eficiência aerodinâmica da aeronave, o que por sua vez será necessário para o dimensionalmento inicial.
Até lá.